Crónica de Alexandre Honrado – Imagens que ardem
Ouvi há dias a uma garota um raciocínio simples e angustiante que ela, todavia, mostrava com grande segurança e convicção: “fui àquela entrevista de emprego, fizeram-me umas perguntas, escrevi um texto, e consegui o lugar. O que eu disse foi a gaguejar, o meu texto era péssimo, nunca tive jeito para escrever nada, mas ia linda, muito bem maquilhada, e eles deram valor à imagem”.
Nos imensos patamares de valoração dos mais diversos universos culturais, a imagem conta hoje com uma força só comparável à dos momentos em que na pré-História, por insuficiência da expressão oral e inexistência da expressão escrita, os seres humanos pintavam nas paredes das cavernas, ou talvez, na fase de extrema riqueza simbólica do antigo Egito, quando os hieróglifos substituíam os sons que afinal lhes eram equivalentes.
Se fosse possível reunir em segundos todo o material histórico e teórico que registou a forma como os povos chegaram a este estado atual – esquecendo a evolução e refugiando-se em fórmulas essenciais, porém básicas e pouco sólidas – o entusiasmo daquela garota acabava por ser um dos sintomas do nosso quotidiano.
O supérfluo, o descartável, a maquilhagem, têm mais poder decisório do que a solidez que possa exigir-se a qualquer prática. Compreendo as interrogações de Georges Didi-Huberman, filósofo e historiador da arte quando procura resposta para a questão: a que tipo de conhecimento pode dar lugar a imagem?
Pensemos que a imagem não é conhecimento, mas reconhecimento. Que na sua origem está alguma coisa criada que se sintetiza através de uma qualquer forma gráfica – desenho da criança ou pintura mural da gruta paleolítica, design gráfico, daguerreótipo ou fotografia, pintura de elite, grafitos nas paredes, tatuagens, filme, registo de vídeo, simples cor na maquilhagem de olhos ou da pele – a resposta será, talvez, que vamo-nos empurrando para uma cultura de crosta, pequenos seres à tona do que não conseguimos ser, sem profundidade, usando recursos à toa sem atentarmos ao desgaste, podendo até atingir os patamares mais altos da sociedade se, em vez de competências, tivermos o “look “certo. Mas, como Didi-Huberman argumenta, a imagem não é um simples corte praticado no mundo dos aspetos visíveis. É uma impressão, um rasto, um traço visual do tempo que quis tocar, mas também de outros tempos suplementares – fatalmente anacrónicos, heterogéneos entre eles – que, como arte da memória, não pode aglutinar. A imagem arde em contacto com o seu real. Concluo eu: deixando uma estranha biomassa, a do ser humano reduzido ao seu âmago mais inútil que, para lá da imagem, podia em contrapartida ser o seu valor mais forte, a sua essência, uma realidade partilhável e de qualidade humana louvável e sincera.
Alexandre Honrado
Historiador
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